“ Para fora do mundo não cairemos, simplesmente estamos nele “, Christian Dietrich Grabbe, que é citado por Freud, no “O mal – estar na civilização”.
Esta frase, que agora parece não fazer qualquer sentido. Uma vez que parecemos cair de algum eixo sem saber como ou quando retornaremos. Uma nova água forte e corrente, que nos fez derrapar – octaedros, metais alcalinos – ( uma pluma numa caixa ? ).
Sente – se um peixe em pequenos aquários ou sente – se como uma esquina que vem ligando nada à coisa alguma. De repente a gente cai ( como nos filmes ) como está sendo agora, universalmente, e, ao cair, percebemos que sim, a frase de Grabbe faz sentido.
Sentimos a necessidade de olhar novamente o “estar no mundo” numa tentativa de dissolver um eu atrofiado e perceber este eu como prolongamento interno e externo de tudo que existe.
A busca por um eu de mais comunhão da existência por trasbordamento. Alargamento de bordas. Alargamento de fibras e pulmões e árvores.
Um eu oceânico. ( ver “O mal estar na civilização – Freud. )
No meu segundo livro, Safári, escrevi um pequeno poema : um pensamento Oceânico em Katergo não é clichê . E não é clichê mesmo, porém, apenas um ano depois, aprimorei a percepção. Katergo é uma ilha
na Grécia e um pensamento ( sentimento ) oceânico não tem endereço, bairro ou edifício. É sem barreiras, ilimitado. Nele tudo se dilui. Em breve os cavalos, os corpos, os pensamentos se diluirão no azul e, de repente, será tudo água nova. As 62 luas de Saturno e as curvas, um novo amor, o movimento planetário e mais 14 movimentos livres.
Me pergunto se não estamos todos ligados. Penso que sim. Há um cordão umbilical do mundo que nos liga e liga tudo. Liga os nervos às correntes marítimas e as janelas, os tornozelos.
Esse cordão vem mastigando paredes e acordando as crianças ( acordem todas elas ! ).
Esse fio. Esse cordão umbilical começa atrás dos teus olhos.
É preciso que a gente enxergue esta linha invisível, por mais contraditório que isso pareça.
Pra isto, é necessário e urgente afugentarmos a polarização atual e procurarmos entender as questões mais subjetivas.
Esse eu oceânico, primordial, em comunhão com a natureza se descobre onde? Ele pode começar seu florescer próximo da arte, através dela.
Através da Poesia.
Necessário termos desde cedo caminhos que levem acesso a estímulos como a poesia, que fazem com que conectemos com as coisas de forma mais intuitiva, num processo de inauguração de olhares para as coisas da vida. Podendo estabelecer conexões mais sinceras com verdadeiros humanos e com a natureza. Estabelecendo valor para as pequenas coisas, que normalmente não são coisas e muito menos pequenas. Acesso ao inconsciente. A poesia é isso. A poesia pode ser esse caminho. ela tem este acesso. A arte tem.
No poema abaixo, o eu se dissolve na própria natureza num processo autofágico. Uma retroalimentação. O eu oceânico. Entende a vida como um mergulho interior e um alargamento de margens.
Escrevi este poema neste ano de 2020, durante a pandemia de Covid19. Ele ele foi publicado pela revista Cult.
autofágico
desossar uma margem encharcando o corpo e os tendões, mergulhar ali
há águas cristalinas
que só são trazidas à luz
por uma escavação epidérmica, mergulhar ali
desossar uma margem
encharcando o corpo e os metatarsos, mergulhar ali
ouvindo a voz de quem não se afoga Existir é mergulhar
Existiremos enquanto mergulhar for possível ( não importa a noite, não importa ) Continue a nadar
Continue a nadar até que o corpo
torne – se ondas na água
continue a nadar
até que as ondas na água tornen – se espuma de onda
continue a nadar
até que a espuma de onda torne – se saliva
mergulhar ali
*Claudia Sehbe: Mora e trabalha no Rio de Janeiro. Publicou Somos Instantes ( Olhares, 2016 ) e Safári ( Corsário – Satã, 2019 ).
É idealizadora e curadora do programa “Palavra”, na Feira Internacional de Arte do Rio de Janeiro. Participou de diversas exposições de arte visuais como Ocupação Mauá ( 2016 ), Club House Rio de janeiro – Cantagalo ( 2016 ), galeria Toulouse ( 2017 ), Monumental Marina da Glória ( 2018 ) e, a mais recente, Fundação Matarazzo,SP. Integra o time dos artistas selecionados para projeto de Jean Nouvel – Cidade Matarazzo.Tem poemas publicados na antologia poética “Simultâneos Pulsando” — uma antologia fescenina da poesia brasileira contemporânea ( Corsário – Satã, 2018), na antologia poética “Alto Mar” ( Sete Letras ) e em diversas revistas e jornais, como, Meteöro e jornais O Globo e Folha de SP.
O além – poema atravessa toda a obra da artista. Não há distinção artística para a expressão poética: o poema, a instalação, a performance são saltos imbricados que experimentam as possibilidades do poema.