BLACKBIRD – PEÇA PREMIADA QUE ABORDA O TEMA SOBRE PEDOFILIA

Por Gilda Maria

 

É uma história de amor torta, impossível e proibida. Enquanto a sociedade considera aquilo como abuso, a menina não se sentia abusada. Pelo contrário, é ela quem assedia o homem na relação. Isso é paradoxal e deixa o texto muito interessante – explica Bruce Gomlevsky 

A peça : Em seu local de trabalho, Ray, um  homem de 56 anos de idade, fica chocado ao ser visitado por Una, uma jovem de 27 anos. Fica evidente o desconforto entre ambos, mas logo descobrimos o motivo: quinze anos antes, quando ela tinha apenas 12 anos, e ele 41 , os dois tiveram um relacionamento amoroso durante 3 meses, mas que , ao ser descoberto, Ray fora condenado por pedofilia. Ao cumprir sua pena, Ray muda de cidade e de nome e consegue se estabelecer em uma nova vida razoavelmente bem-sucedida. Entretanto, Una ao reconhecê-lo em uma fotografia de uma revista especializada, busca descobrir seu endereço para ir ao seu encontro. Ray a conduz ao refeitório da empresa, onde os dois se envolvem em um confronto longo e difícil que provoca contínuas lutas e necessidades para se entenderem e entrarem em acordo com suas emoções intensamente conflitantes.

 

Debate sobre a peça Blackbird -23/03/2021

“ Se nos calarmos até pedras clamarão” Lucas , 19:40

“ O insuportável é que nada é insuportável” Rimbaud

 

No início torna-se significativo um comentário sobre o cenário da peça  – o lixo e a porta que abre e fecha, podem ser vistos como o retrato da questão enigmática que norteia o drama da peça, ou seja , a cena do ato sexual de um  homem de 40 anos com  uma menina de 12 anos e logo na sequência abre a porta e vai embora..

“ A verdade que alcançamos  é o que conseguimos suportar” Lacan

Una, a personagem da peça  voltou para saber sobre a verdade de  Ray , ele era um pedófilo ou de fato a amou? O que foi revelado da história por todos  não foi suficiente pra ela, o que a faz então  retornar procurando desvendar o mistério da cena sexual ? O que se passou na cena do ato sexual ? Ele depois do fato consumado abriu a porta e partiu pra jogar o lixo lá fora e não voltou mais …

Enquanto Ray leva o lixo para a lixeira , Une indaga : Aonde vc costuma comer ?

É curioso, porque é como se ela entendesse que ele come no lixo mesmo , o alimento está no lixo , esta seria a cena fantasmática de Ray , o personagem de 40 anos que seduz uma menina de 12 anos que acabou de menstruar , ele é o lixo ?

Num processo analítico você desvenda a verdade através das associações  acessando seu material inconsciente  e não adianta que os outros  simplesmente revelem  a verdade que eles acreditam ter ocorrido de fato. A personagem UNA dizia : …Eu me sinto como um fantasma , você me transformou num fantasma. As pessoas falavam de mim como se eu não estivesse lá. Não me deixavam falar –  Lembrei-me de Marguerite Duras , no deslumbramento de Lol  , foi  abandonada pelo noivo numa festa por outra mulher  e a escritora  descrevia  assim : “ uma palavra –buraco  , oca em seu centro por um buraco , um buraco em que todas as outras teriam sido enterradas. Não podemos tê-la dito, mas poderíamos fazê-la ressoar “.. Esta palavra ficou soterrada e impedida de subir para a superfície . Hélio  Oiticica dizia  – sinto necessidade de palavra- espaço-tempo –quando Une  retorna na cena traumática era para saber se ainda se encontrava fixada  como objeto de gozo nas mãos do Outro abusador , para saber da verdade do desejo dele se havia sentimento / amor – ela estava buscando sua própria verdade.

A verdade precisava ser desvelada e não revelada por todos ao redor dela , até mesmo pela justiça que o incriminou durante 3 anos como pedófilo , mas o mistério se manteve para a Unaque precisa decifrá-la . Ela precisava das palavras de amor sobre o que ela viveu com ele para seguir sua vida, mas ainda não a recebe e o enigma se mantém; porém , na visão lacaniana o signo do amor continua o mesmo , ou seja, a presença de uma menina de 12 anos continua fazendo parte da cena fantasmática de Ray. Ele casou com uma mulher mais velha do que ele com uma filha , ou seja , convivia com uma enteada de 12 anos.  “ O amor é o signo que trocamos de discurso” . Parece que o signo continuava o mesmo…

O encontro traumático do significante com o corpo “ Trou – matismo” Trou em francês é furo . Eu sou aquilo  que perdi – Fernando Pessoa e Caetano Veloso. Existirmos, a que será que se destina? Eis uma questão importante que Una poderia se indagar.

Freud dirá que a mulher se organiza em torno das palavras de amor em função de uma angústia do desamparo diferente dos homens que em função de sua virilidade se organizam mais . O gozo de uma mulher pode até jogá-la numa certa loucura se não for revestida de palavras de amor , que parece que foi o que Una vivenciou quando ela diz que se tornou um fantasma , um fantasma na medida que ficou sem nomeação possível. O que se passou com Una , ficou abandonada por Ray como um objeto-dejeto – abjeto?

Penso que quando se trata de criança ,  a personagem não tinha nem  menstruado , não podemos relativizar e muito menos negociar , simplesmente não é admissível um homem de 40 anos se aproximar de uma menina  cheio de códigos  e seduções com promessas de amor para finalizar num quarto de motel e no término da relação, ele resolver sair para fumar um cigarro e não voltar mais…Um detalhe que foi muito comentado no debate foi que todo pedófilo afirma que fez o que fez por amor a criança.

Em relação ao Ray parece que a cena fantasmática dele necessita sempre  de uma jovem por perto ,  como no filme  Lolita , o sujeito casa com uma mulher mais velha visando seduzir a filha de 12 anos .

Lacan , no Seminário 10 , a angústia , utiliza a metáfora do louva-a-deus  , em uma referência ao ato sexual desse inseto , dizendo que a fêmea , depois do ato sexual , devora o louva-a-deus macho. Tal metáfora evoca a condição de angústia do sujeito diante da falta do significante no campo do Outro. A questão da angústia estaria concentrada no enigma do sujeito no campo do Outro. 

Lacan inventa  uma cena dele sozinho se defrontando  com o louva-a-deus gigante e diz assim: Eu me olho, miro minha imagem , assim fantasiado, no olho facetado do louva-a-deus. É isto a angústia? Está bem perto. Trata-se da apreensão pura do desejo do Outro como tal , uma vez que justamente ignoro minhas insígnias, pois estou ridicularmente vestido com a mortalha do varão. Não sei o que sou como objeto para o Outro. ( lacan , 1062/2004 p.39)

A questão importante mencionada por Lacan, diz respeito a opacidade do olhar do louva-a-deus, que não reflete a imagem do sujeito e acaba devorando seu parceiro sexual como objetinho a seu bel prazer. Eis a metáfora da angústia por excelência. A angustia é o afeto que não engana e que sinaliza que o sujeito está correndo o risco de ser devorado  como  objeto do gozo do Outro .

A questão do feminino é bem mais complexa , uma vez que a mulher não pode se tornar mulher por ela própria, é preciso que um homem a deseje para colocá-la nessa posição. Ela só é desejada pelo que ela não tem, na medida em que ela não tem o falo ela pode se tornar um falo para um homem. E só não tendo que ela  pode ser. Mais adiante na teoria , Lacan dirá que o homem serve de conector para que a mulher possa ser esse Outro dela própria , através do homem como um conector dela com ela própria. Bassol , nos ilustra essa questão com a dança do tango ; a mulher dança com o homem como um conector na hora da dança , mas a cena é toda dela…Este seria o lugar que um homem com seu amor revestido de palavras e gestos poderá fazer uma mulher se conectar com o feminino nela própria..




Gilda Maria Pitombo Mesquita Doutoranda em Arte na UERJ, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Veiga de Almeida , psicóloga pela UFRJ Título de Psicanalista pela Sociedade Iracy Doile, Spid. Coordenou uma pós graduação em psicanálise na Celso Lisboa. Coordenadora do Projeto Interlocuções: Psicanálise, Literatura e Arte, na Cidade das Artes há seis anos, aberto ao público interessado em dialogar e trocar saberes.


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