“Se o poeta for casto nos seus costumes, também o será nos seus versos, a pena é
a língua da alma: quais forem os conceitos que nela gerarem, tais serão os seus
escritos”.
Miguel de Cervantes
Neste texto, pretendemos nos servir de um clássico da literatura universal para pensarmos o ato poético e sua relação ao amor, a saber: “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha”, de Miguel de Cervantes. O Dom Quixote cervantino é um louco fascinante, cheio de histórias encantadoras e sua leitura nos arrebata para situações inusitadas. O louco aparece na ficção para declarar verdades incômodas. O ato em psicanálise é desta ordem, na medida em que causa rupturas. Lacan cita o exemplo de Julio Cezar atravessando o Rubicão. A partir deste ato, Julio Cezar invade a terra mãe (Roma) e transforma a república em Império.
No Seminário “O ato psicanalítico”, Lacan (1967-1968) dirá que não é de um agir que se trata, pois não se encontra na ordem do pensar, por isso não é uma conjetura, nem uma prática. O ato se inscreveria mais do lado da poesia. Ele utiliza o termo poesia em grego, ttoínon e se refere a Aristóteles, quando este afirma que a poesia vem de fora do sujeito. “Algo que toma o sujeito”, e é neste sentido que Lacan se define como um poata, não um poeta. Na verdade, o analista é o poata, é um poeta do ato, porque no ato é que ele se deixa tomar pelo inconsciente. O poeta se deixa tomar pelo inconsciente e revela algo que ele próprio não sabia.
No amor por Dulcineia Del Toboso, Dom Quixote sempre se revela delirante, o que me levou ao texto de Platão, “O Banquete”, especificamente ao discurso de Fedro sobre o tema: “se o amor é um delírio é preciso condená-lo por ser um delírio ou
não haveria alguma virtude neste delírio?”. O personagem Fedro começa elogiando Eros como fonte dos maiores bens, inspirador dos amantes e instigador do arrebatamento nos heróis.
Sócrates, outro personagem do “Banquete”, recorre à Diotima, que era uma sacerdotisa e para quem Eros não pode ser um deus, afinal, quem ama deseja algo que não tem, logo, o amor é uma carência. Segundo esta sacerdotisa, se o amor é uma busca, ele é um movimento que parte da falta e vai em direção a uma possibilidade de plenitude. Mas, se ele se tornar posse, deixa de ser o que é, pois perderá a qualidade de ser intermediário. O amor é decisivamente “um ser entre”. Amar, então, é gerar na beleza, ou seja, produzir algo perante o que é belo. Desse modo, quando o ser carente encontra o que busca na beleza ou na excelência do outro, torna-se “grávido” e tem necessidade de gerar. Amar significa buscar recursos para lidarmos com nossa mortalidade.
Retornando ao discurso de Fedro: segundo ele, haveria tipos diferentes de delírios divinos dependendo do deus responsável pela possessão. Ou seja, ser possuído pela musa leva-nos a fazer poesia. Neste discurso, Platão diz que o entusiasmo é uma possessão divina. Em grego, a palavra entusiasmo quer dizer, literalmente, endeusamento ou ser inspirado pelos deuses .
Dom Quixote mantém o amor como “um ser entre”, possuído pela musa inspiradora sem-par, Dulcineia Del Toboso cria poesias. Em outro episódio, Sancho, que era muito esperto, vendo que seu amo não estava em seu juízo pleno, desobedece a certas determinações do patrão como, por exemplo, ir a Toboso entregar uma carta para Dulcineia. Ele tenta uma saída, pois sabe que ela não existe a não ser na imaginação do cavaleiro da triste figura. Sancho vê que pela estrada vêm, em sua direção, duas mulheres montadas em burricos. Ocorre a Sancho a ideia de enganar Dom Quixote, tentando convence-lo que é Dulcineia que vem se aproximando. O nosso anti-herói se arruma e vai ao encontro de sua amada. Sancho pensa que, sendo Dom Quixote maluco, provavelmente iria acreditar que a mulher era realmente Dulcineia. Mas, para sua surpresa, o amo reconhece que não era Dulcineia. Elas são camponesas. É inacreditável que, quando as condições são favoráveis para enganá-lo, ele não se deixe levar pela sua delirante imaginação1.
Lacan (1956-1957) situa três elementos que entram em cena no amor: o amante, o objeto amado e o para-além do objeto. E o que estaria nesse além senão a própria falta? Justamente por isso ele diz que “o dom dado em troca não é nada”. Então, o amor é dar o que não se tem a quem não quer. A relação de Dom Quixote com Dulcineia ilustra muito bem esta questão do amor, pois o acento está no amor, e não no objeto amado. Esse acento comparece no amor cortês, na concepção barroca de amor. E Pessoa (apud SILVA, 2011) afirma que o que se ama é o próprio amor. Essa também seria uma frase possível de Dom Quixote: “Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar…”.
Dulcineia não existe. Só no imaginário delirante do cavaleiro da triste figura que existe “A Mulher”: completa, sem falta. O ato poético é o destino sublimatório desse encontro com o real. No ato da escrita, Cervantes acessa algo inominável e inacessível do real, pois na realidade Dulcineia não existe mesmo e o texto acabou se eternizando como uma história de amor impossível, como Romeu e Julieta, de Shakespeare, e Beatriz, de Dante. Trata-se no amor de uma ficção que deve ser tomado literalmente ao pé da letra.
O ato poético é força sublimatória. O ato aponta para o âmago do ser, logo toca o gozo. Lacan2 assinala que “falar de amor é, em si mesmo um gozo”. Mais adiante completa: “a única coisa que se pode fazer um pouco de sério é a letra da carta de amor” (Ibid., p. 113). O único ato de amor de Dom Quixote em relação à Dulcineia foi escrevê-la. Lacan ilustra com o exemplo de Madeleine com Gide, o escritor francês que escrevia cartas de amor para Madeleine, mas não tinha relações sexuais com a esposa.
A sublimação depende da dimensão narcísica do eu. Freud (1908) refere se ao termo para dizer que é um tipo particular de atividade, de destino pulsional: a criação literária, artística e intelectual. Não tem nenhuma relação aparente com a sexualidade, mas extrai sua força da pulsão sexual, na medida em que esta se desloca para um alvo não sexual, investindo em objetos socialmente valorizados, tais como as obras, as criações literárias, as poesias etc. A partir do Seminário “A ética da psicanálise”3, Lacan define a sublimação como sendo “o objeto elevado à dignidade da coisa, das Ding”. Um pouco mais adiante ele dirá que: “toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio” 4. Assim sendo, “em toda forma de sublimação, o vazio é determinante” 5.
No Seminário “O ato psicanalítico”, Lacan (1967-1968) reafirma que não há amor que não dependa dessa dimensão narcísica. O que se opõe ao narcisismo, a chamada libido objetal, não teria nada a ver com o amor, uma vez que o amor é o narcisismo e a libido narcísica e a objetal se opõem. Não há um dualismo, ou isso ou aquilo, ou eu ou o outro: o eu é o outro.
Dom Quixote ficou à disposição da poesia – quer dar encantamentos cheios de entusiasmos. No Seminário “O desejo e sua interpretação”, Lacan6 afirma que “as criações poéticas engendram mais do que refletem as criações psicológicas”. Em “Nota Italiana”, Lacan (1973) dá ao entusiasmo um lugar de importância no final de análise. Diz que sem entusiasmo não há analista. No final de uma análise o sujeito adquire um saber sobre o seu inconsciente. No Seminário “O ato psicanalítico”, Lacan ressalta que o final da análise se traduz por essa coisa não somente formulada, mas encarnada, que se chama a “castração”. O final de análise não é o reencontro com o objeto: é o encontro com a falta de objeto. O analista é aquele que vem, ao termo da análise, suportar não ser nada mais que este resto. Porém, o que se espera é que, depois de um processo de destituição narcísica ao longo de uma análise, o analista possa ter um entusiasmo com a vida, ou melhor, com o amor e, quem sabe, ser um poata?
Bibliografia:
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino Assman. São Paulo: Continental, 2001. BERNARDO, Gustavo. O Livro da Metaficção. Rio de Janeiro: Tinta negra, 2010.
CERVANTES, Miguel de. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha. São Paulo: Editora 34, 2007.
FREUD, Sigmund. Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In: FREUD, Sigmund, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1908, vol. IX.
GULLAR, F. O Encontro de Quixote e Gullar. In: MONTE, S. 400 anos de Paixão. Rio de Janeiro: EMERJ, 2005.
JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, vol. II.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1956-1957.
_______________. O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Inédito, 1958-1959.
_______________. O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico. Inédito, 1967-1968.
_______________. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1972-1973.
_______________. Nota Italiana. In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1973.
PLATÃO. O Banquete. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Trad. Francisco Wiel et al. Campinas: Pontes, 1992.
SILVA, Paulo Neves da. et al. Citações e Pensamentos de Fernando Pessoa. São Paulo: Ed. Leya, 2011.
1 (GULLAR, 2005)
2 (1972-1973, p. 112)
3 (1959-1960)
4 (id.162)
5 ( Lacan, 1959-1960 p.162)
6 (1958-1959, p. 262-263)
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*Gilda Maria Pitombo Mesquita Doutoranda em Arte na UERJ, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Veiga de Almeida , psicóloga pela UFRJ Título de Psicanalista pela Sociedade Iracy Doile, Spid. Coordenou uma pós graduação em psicanálise na Celso Lisboa. Coordenadora do Projeto Interlocuções: Psicanálise, Literatura e Arte, na Cidade das Artes há seis anos, aberto ao público interessado em dialogar e trocar saberes.