O Feminismo Negro foi tema dos estudos desenvolvidos no Mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, na UFRJ (1994-1997), quando analisei o processo de organização das mulheres negras no Rio de Janeiro, originando a dissertação “O Feminismo Negro em Construção: a Organização do Movimento de Mulheres Negras do Rio de Janeiro”, (LEMOS,1997), onde refleti sobre as motivações que levaram as mulheres negras se organizarem independentemente do Movimento Negro e do Feminismo Tradicional ou Hegemônico.
Na construção da dissertação, concebemos o Movimento Negro – misto, laico e
pluripartidário –, que desqualificava a participação das mulheres, as colocando em lugar secundário na sua participação política, reservando a arrumação do espaço para reuniões, convocações telefônicas para reuniões, a elaboração das atas de reuniões, dentre outros.
A definição de Feminismo Tradicional, pode ser referenciada em Marta Suplicy (1992, p. 13), que o define como fruto da ideologia introjetada e da identificação com o opressor tentando provar que a mulher pode ser igual ao homem, repudiando o sem-valor do feminino, e vivendo masculino como o superior a ser almejado e copiado.
Em determinados momentos, esse feminismo tradicional ou hegemônico, também classificado como branco, preconizava os valores da raça hegemônica, por conseguinte não estava imune às práticas que desconsideravam as diferenças etnicorraciais. Muitas experiências de mulheres negras com as mulheres brancas nos 1970 foram conflituosas, tais como os posicionamentos de brancos e negros no processo da Abolição, e ao longo de toda a história do Brasil.
Lélia Gonzalez apresentou suas reflexões no livro A Mulher Negra na Sociedade Brasileira (1979, p. 101), ao relatar que as mulheres negras quando introduziram o racismo nos debates durante o Encontro Nacional da Mulher, no Rio de Janeiro, em março de 1979, foi possível ver as reações contraditórias. Segundo a autora, “existia um consenso quanto às exigências na luta contra a exploração da mulher, do operariado etc., etc., mas as falas das mulheres negras ao abordarem o racismo foram classificadas de emocional e revanchistas, entretanto, representantes de regiões mais pobres sabiam o que estava sendo dito”. Para a antropóloga, “essa tensão gerada, não só foi uma evidência do atraso político – principalmente dos grupos que se consideravam mais progressistas – como a negação do racismo, para ocultar a exploração da mulher negra pela mulher branca”.
Era comum não se discutir o racismo no interior do Feminismo Tradicional. Sandra Azeredo (1991, p. 129) reconheceu essa lacuna ao relatar sua própria experiência em 1980, quando escreveu um livro sobre identidade sexual e social da mulher, e percebeu que, apesar de “o livro conter experiências de 50 mulheres, muito diferentes umas das outras, o termo “mulher” do título está no singular representando uma identificação através da opressão”. Observou a autora, que em nenhum momento foi mencionado a cor da pele ou “raça” dessas mulheres.
A percepção sobre o racismo na sociedade brasileira; a relação entre mulheres brancas e negras; o sexismo pragmático do Movimento Negro e as diferenças entre os projetos políticos das mulheres brancas e dos homens negros, conflitavam com as aspirações das mulheres negras, que tensionavam no ativismo nesses dois espaços: o da mulher branca e o do homem negro.
O termo Feminismo Negro era pouco usado tanto nos discursos políticos, quanto na academia. Entretanto, após nesses 23 anos que estudos e atuação na área, podemos considerar que as ações da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, datada de 1820, situada no Recôncavo Baiano, em Cachoeiras, composta exclusivamente por mulheres, chamadas originalmente de “negras do partido alto” – negras que ascenderam socialmente. Suas ações surgiram na devoção à santa, e também vinculada à luta pelo fim da escravidão demonstrando, o importante papel de liderança das mulheres africanas, naquela estrutura social. Participavam ativamente do movimento abolicionista. Portanto, é uma correção histórica considerá-las como as primeiras feministas negras desse país.
Outra mulher relevante para o feminismo negro é Maria Firmina dos Reis, com seu romance Úrsula, um marco na produção literária no Brasil. Foi a primeira escritora, ano de 1859 e pioneira na abordagem da causa abolicionista, que antes do Navio negreiro de Castro Alves, poema declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”.
Caminhando um pouco mais, vale lembrar da primeira mulher negra eleita ao cargo de deputada estadual, em 1934, no estado de Santa Catarina, Antonieta de Barros, tendo como bandeira de luta a educação para todos, a valorização da cultura negra e a emancipação feminina. Se destacou como jornalista, política, educadora. Maria da Ilha, era o pseudônimo usado como estratégia para dar visibilidade aos seus pensamentos sobre a situação das
mulheres, de 1922 a 1927, em um tempo que as mulheres eram muito discriminadas ao exercerem “atividades de homens”, e na afirmação dos seus direitos, abriu caminho para outras mulheres. Fundou e dirigiu o Jornal A Semana.
No entanto, será uma mineira a se inserir no cenário nacional como uma grande escritora, e trazer ao público o cotidiano de uma moradora da favela do Canindé, zona norte de São Paulo. Carolina Maria de Jesus, expressou a visão de uma catadora de lixo e produziu um clássico da literatura brasileira, o livro Quarto de Despejo, de 1960. Neste livro, os relatos sobre as opressões de classe, o preconceito racial, a relação com a vizinhança, a denúncia da classe política e da falta de políticas públicas, a jornada de trabalho sub-humano em que as mulheres negras estavam submetidas e o compromisso de uma chefe de família na educação e nos proventos aos filhos, são envolventes, emocionantes e intensos. Carolina denunciava o pior mal que um humano possa viver: a fome!
A ativista, professora mestre e a política, Lélia Gonzalez trouxe importantes contribuições ao pensamento feminista negro. Transformou sua produção intelectual sua militância por democracia racial no Brasil. Podemos encontrar em seus textos, denúncias de racismo, de sexismo, das desigualdades entre as classes sociais, dos preconceitos por orientação sexual e suas incidências sobre as mulheres negras. Lélia também abordava os sistemas de opressão interseccionados de raça, gênero, classe e orientação sexual (1982). Defendia a importância de negros e negras, serem sujeitos/as de sua pesquisa, e não o objeto como a prática que diversos/as pesquisadores/as determinavam. Foi além das fronteiras brasileiras, nas viagens para os países da América Latina, defendia uma articulação política entre as mulheres negras da região, e pontuava que deveríamos parar de olhar para a “Oropa” e priorizar o
que partilhamos de experiências de colonização de enfrentamento ao racismo e
ao sexismo, era uma crítica decolonial.
Portanto, o feminismo negro é uma ação política de mulheres negras em busca de direitos, em diferentes momentos de construção dessa nação, que preserva o racismo e o sexismo em suas entranhas. A afirmação dos direitos fundamentais é nosso alvo, não só compreender a sociedade e a vida das mulheres negras, mas também para transformar a realidade que procura subalternizar e invisibilizar nossas ações e nosso potencial transformador.
Profª Dra. Rosalia de Oliveira Lemos, é Professora titular do Instituto Federal do Rio de Janeiro/IFRJ – campus Nilópolis; fundadora da E´LÉÉKÒ: Gênero, Desenvolvimento e Cidadania
Pesquisadora CNPQ: Grupo de Pesquisa: Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra/Linha de Pesquisa – Feminismo Negro – ativismo/movimento social e políticas públicas para mulheres negras. Endereço para acessar este espelho: dgp.cnpq.br/dgp/espelholinha/8626544381633313401995.
site: Portal da Diversidade/IFRJ – www.ifrj.edu.br/dialogosediversidade